Primeiro vieram as mostras, depois os documentários, entre outros, e, por fim, a composição de um acervo fílmico dedicado ao resgate e à difusão da história do cinema brasileiro. Desde 2001, com a mostra (e o livro-catálogo) Cinema Marginal Brasileiro e Suas Fronteiras, a Heco Produções se especializou em aspectos negligenciados de nossa cinematografia. A trajetória de 25 anos permitiu dialogar com cineastas, produtores e outros profissionais, entender os problemas e as demandas, incluindo a dificuldade de se encontrar e produzir cópias em película, e aprender os caminhos para dar visibilidade a essa vasta obra. Hoje, a Heco conta com os direitos patrimoniais de 64 filmes, produzidos entre os anos 1950 e 2000. Cerca de um terço do acervo já dispõe de cópias digitais em 2K e/ou 4K, enquanto o restante caminha para o mesmo destino.
Percebe-se o foco na Boca do Lixo, recorrente desde as retrospectivas de A. P. Galante, José Mojica Marins e Ozualdo R. Candeias, os documentários Ozualdo Candeias e o cinema (2013) e O bom cinema (2021), além da digitalização e difusão da revista Cinema em Close-up (1975-1977). O polo cinematográfico paulista, sediado na Rua do Triunfo, foi responsável por centenas de longas entre 1957 e 1992 e sua filmografia segue sendo redescoberta. O destaque principal é a coleção (quase) completa das obras de Candeias, incluindo curtas, médias e longas, em película e em vídeo. O acervo compreende desde as primeiras incursões na direção, como o documentário Tambaú (1955) e o institucional Polícia feminina (1960), até as últimas, O vigilante (1992) e Cinemateca brasileira (1993), realizadas na época do desmonte do cinema brasileiro sob o governo Collor. Candeias se notabilizou por uma estética inventiva e autoral, um olhar arguto para as figuras marginalizadas. No final dos anos 1960, ele rompeu com os padrões do cinema brasileiro em obras como A margem (1967), Meu nome é... Tonho (1969), A herança (1971), Zezero (1974) e Aopção ou As rosas da estrada (1981). Frequentador da Boca desde 1967, Candeias acompanhou e documentou todas as transformações da região em curtas como Bocadolixocinema (1976) e numa vasta coleção de fotografias, inclusas no Acervo Heco Produções.
Historiograficamente, Candeias aparece como um nome central do chamado Cinema Marginal, também presente no Acervo em curtas de Rogério Sganzerla [B2 (2001)] e Jairo Ferreira [Nem verdade nem mentira (1975)]. A Boca do Lixo, crucial a essa produção, ficou mais conhecida, no entanto, pela extensa produção popular e erótica realizada entre os anos 1970 e 1980. A Heco conta com filmes de Alfredo Sternheim, Antonio Meliande, Carlos Reichenbach, Jean Garrett, John Doo, José Mojica Marins e Ody Fraga, todos cineastas importantes desse período, produzidos, de maneira geral, por Augusto de Cervantes e Roberto Galante.
Com carreiras iniciadas nos anos 1960, Sternheim, Meliande, Doo e Fraga figuram com obras tardias, realizadas nos anos 1980. Conhecido pelos melodramas, o crítico, pesquisador e cineasta Alfredo Sternheim comparece com o thriller Tensão e desejo (1983). Antonio Meliande, por sua vez, notável diretor de fotografia, incluindo de diversos filmes de Walter Hugo Khouri, transitou para a direção em meados dos anos 1970. Pertencem à Heco os raros Anarquia sexual (1982) e Vadias pelo prazer (1983). Dos três filmes do diretor e ator chinês John Doo, talentoso expoente do horror brasileiro, o destaque é o melodrama Volúpia de mulher (1984), realizado num momento em que o sexo explícito já havia dominando as salas de cinema populares. Desses, Ody Fraga, roteirista e diretor profícuo, é o mais presente, com sete longas. Entre eles, o libertário e provocador O palácio de Vênus (1980), quiçá seu melhor filme, e o transgressor e hilário Senta no meu, que eu entro na tua (1986), um dos mais icônicos filmes brasileiros de sexo explícito.
Tanto Reichenbach quanto Garrett constam com algumas de suas mais importantes obras. Ambos cineastas, frequentes colaboradores, se destacaram pelo apuro visual e pelo retrato complexo da sexualidade feminina, em um período ainda um tanto conservador. A capacidade de Carlos Reichenbach entender cada momento histórico o permitiu trafegar entre o Cinema Marginal, a produção erótica e a dependente do Estado, sem perder seu caráter autoral. O melodrama zurliniano O paraíso proibido (1981) e a comédia anárquica O império do desejo (1980) são exemplos disso. Garrett, por sua vez, ficou confinando ao cinema da Boca, mas dominou suas prerrogativas como poucos, em filmes incrivelmente atuais como o horror Excitação (1977) e o melodrama Mulher, mulher (1979), ambos com fotografia esmerada de Reichenbach.
José Mojica Marins, mais conhecido pelo personagem Zé do Caixão e por seus filmes de horror, foi um cineasta polivalente, que percorreu gêneros diversos em mais de 50 anos de carreira. O Acervo Heco Produções destaca algumas dessas obras, como o melodrama juvenil musical Meu destino em tuas mãos (1963), realizado em um momento de busca de espaço, o ótimo faroeste D’Gajão Mata para Vingar (1972) e a comédia erótica de tons sobrenaturais Como consolar viúvas (1976), ambos dentro das engrenagens da Boca do Lixo.
Mais recentemente a Heco adquiriu parte da filmografia brasileira do argentino Carlos Hugo Christensen, figura central do cinema latino-americano, responsável por obras cruciais do cinema argentino e brasileiro. O cineasta veio para o Brasil em meados dos anos 1950 para realizar coproduções com a Maristela, em São Paulo, mas logo se instalou no Rio de Janeiro. Ele é o único diretor do Acervo a não ter ligação direta com a Boca do Lixo, mas um rápido vislumbre da coleção permite entender o interesse da Heco: além da qualidade de suas obras, Christensen transitou com excelência por gêneros diversos e nunca perdeu de vista o grande público. Entre os onze filmes obtidos do produtor e assistente de direção Francisco Marques, estão a comédia Meus amores no Rio (1958), os melodramas Viagem aos seios de Duília (1964) e A intrusa (1979), o fantástico O menino e o vento (1967), e os policiais Anjos e demônios (1970) e A morte transparente (1979). Constam também os filmes de horror, Enigma para demônios (1975) e A mulher do desejo (1977), atualmente sendo recuperados em 4K.
A constituição do Acervo Heco Produções, dessa forma, possibilita resgatar e circular importante e histórica parcela do vasto cinema brasileiro. A luta, agora, é masterizar todas as obras em altíssima qualidade digital e salvar outras tanto do esquecimento.