Talvez ainda não tenhamos dado conta da riqueza e da diversidade do cinema produzido na Boca do Lixo, polo cinematográfico paulista responsável por mais de 1000 longas-metragens entre 1957 e 1992. Sediado na Rua do Triunfo, no bairro da Luz, o local, embora tenha assegurado seu lugar na história do cinema brasileiro, conhecido pela vasta produção comercial e erótica, está distante do cânone, e seus profissionais, em sua maioria, caíram no ostracismo. Se, por um lado, tal esquecimento empobrece a compreensão do cinema brasileiro, por outro, permite a descoberta, por novas gerações, de obras e criadores notáveis. Dessa forma, podemos saudar o projeto “Mestres do Cinema Paulista”, idealizado pela Heco Produções, pela iniciativa de recuperar em 4K cinco filmes de seu acervo, obras seminais e menos conhecidas – e, por vezes, incrivelmente atuais – de extraordinários diretores do cinema paulista.
É o caso do açoriano José Antônio Nunes Gomes da Silva, mais conhecido como Jean Garrett (1946-1996), que veio ao Brasil em 1966 e logo se enturmou com o pessoal do cinema. Trabalhou com José Mojica Marins, Ozualdo Candeias, Fauzi Mansur etc., como fotógrafo de cena, ator e assistente de direção, antes de ser convidado por David Cardoso para dirigir e roteirizar seu primeiro longa-metragem, A ilha do desejo (1975). O sucesso comercial rendeu mais duas parcerias com o produtor, Amadas e violentadas (1976) e Possuídas pelo pecado (1976). Podemos entender essa trinca como o período de formação de Garrett enquanto cineasta, tendo de equilibrar as demandas do mercado e a aspiração artística. Nos três, as convenções do cinema de gênero, como o policial, o thriller e o melodrama, são mescladas com o erotismo intrínseco ao cinema popular do período, em típicos veículos para a realçar o galã-produtor. Neles, já é notável o esforço do cineasta em extrair o máximo técnica e estilisticamente dos baixos orçamentos.
A trinca permitiu voos mais altos a Garrett. O produtor Manuel Augusto Sobrado Pereira, mais conhecido naquele momento como Augusto de Cervantes, responsável, entre outros, pelos primeiros filmes de Mojica e por Meu nome é... Tonho (1969) – portanto, pelos primeiros trabalhos de Garrett no setor –, propiciou ao cineasta uma produção mais refinada. Excitação (1977), Noite em chamas (1978) e Mulher, mulher (1979), os três da MASP Filmes, podem ser entendidos como o amadurecimento de seu cinema. Neles, o cineasta alicerça as principais bases estéticas e formais de sua obra, como a conformação do melodrama enquanto gênero central e uma atmosfera fantástica, em que a realidade é sempre posta em dúvida. Há também predileção por uma tônica intimista e psicológica na encenação, por vezes moldada pelo cinema de Walter Hugo Khouri, com certo verniz intelectual, daí a escolha de profissionais como Ody Fraga, Carlos Reichenbach, Inácio Araujo e João Silvério Trevisan no roteiro. Ressalta-se, também, a investigação da sexualidade e do ser mulher no Brasil daquele período, que tornam seus filmes particularmente surpreendentes para os dias de hoje.
Em Excitação, vemos, por exemplo, um caso clássico de manipulação psicológica. Após sair do sanatório, Helena (Kate Hansen) se muda para uma isolada casa de praia em busca do apaziguamento anímico. Logo, eletrodomésticos começam a funcionar sozinhos: a televisão e a vitrola ligam e desligam, o liquidificador engata agressivamente e até o ventilador avança na direção dela. Garrett mescla elementos de melodrama, thriller e horror. Seria alucinação ou assombração? Pouco antes da mudança, a casa presenciou o suicídio de Paulo (João Paulo), o antigo dono e marido da vizinha. Seria ele tentando se comunicar? Garrett é um cineasta elegante nas escolhas visuais – nos movimentos de câmera do fotógrafo Carlos Reichenbach ou nos closes no rosto de Hansen, por exemplo –, mas que não tem medo de flertar com o exagero melodramático. São constantes os planos de objetos inanimados, incluindo a cadeira onde Paulo subiu para se enforcar, como se a atenção dada pela câmera pudesse materializar o senso sobrenatural da história. Descobrimos, no entanto, que tais eventos não passam de uma tramoia do marido Renato (Flávio Galvão). Engenheiro de informática que assumiu os negócios da família de Helena no ramo, ele cria um artifício para a levar à loucura e a internar. O trato dele é previsível, questionando, sempre que possível, a sanidade da esposa, no melhor estilo dos chamados filmes de mulheres paranoicas, em que as personagens femininas são levadas ao extremo como forma de controle coercitivo. Tal premissa seria extrapolada em longas como A mulher que inventou o amor (1980) e Karina, objeto de prazer (1982), que mostram as consequências das violências – físicas e psicológicas – sofridas pelas mulheres. E, assim como em Excitação, elas transgridem o papel de vítima e assumem seu próprio destino. A mulher que sonhava em se casar, no filme de 1980, depois de ser violentada num açougue, reage numa potente reimaginação do subgênero rape and revenge, enquanto que Karina entende que vale mais ser presa do que ficar à mercê do marido, cafetão e abusador.
Mulher, mulher, por sua vez, é um melodrama intimista sobre a emancipação sexual da mulher, tópico bastante libertário para o período. O longa foi promovido como sendo “sobre a sexualidade feminina: suas taras, suas neuroses, seus fetichismos, seus impulsos e suas fantasias; um filme cheio de perguntas, algumas das quais o moralismo não saberá responder.” Abordar a libertação sexual sempre esteve no norte de Garrett – vide A força dos sentidos (1980) e O fotógrafo (1981), por exemplo. Ele era admirador da obra do psiquiatra Wilhelm Reich, autor de livros como A revolução sexual e A função do orgasmo, que contaminou seus filmes. No entanto, a principal referência para Mulher, mulher foi o polêmico Relatório Hite: Um profundo estudo sobre a sexualidade feminina, publicado em 1976, em que Shere Hite entrevistou milhares de mulheres nos EUA, de 14 a 78 anos, sobre a vida sexual e o orgasmo feminino.
No longa, a viúva Alice (Helena Ramos) se isola em sua casa de campo após a morte do marido. Em meio aos artefatos deixados pelo psiquiatra, como as gravações de suas sessões, Alice rememora a vida do casal e repensa sua trajetória. A vida sexual das pacientes a faz pensar na sua própria, na dificuldade em atingir o orgasmo e na relação com o marido, que, por vezes, fazia dela um joguete nas mãos dos outros como material de pesquisa. Garrett entende bem os preceitos do cinema popular erótico da Boca, com cenas recorrentes de nudez e insinuação sexual, mas não cai no apelativo. A jornada de Alice é de descoberta, de entender o próprio corpo e prazer, reencenando os testemunhos que ouve. Assim como em Excitação e A força dos sentidos, nunca fica muito claro o que é a realidade diegética e o devaneio, e essa é parte da graça – mesmo porque o desejo extrapola a sensibilidade corpórea. O cineasta permite que a personagem explore as mais diversas fantasias sem qualquer julgamento moral, seja com o chuveirinho, com outra mulher ou com o cavalo puro sangue que garantiu a maior bilheteria da carreira do cineasta. Os diálogos, por vezes, esbarram no didatismo protocolar, mas Garrett era um encenador admirável, que confiava na expressividade de seu elenco. A personagem permitiu que Helena Ramos se revelasse uma excelente atriz dramática e ganhasse papéis mais relevantes, como em Mulher objeto (1981), de Silvio de Abreu, e A mulher sensual (1981), de Antônio Calmon, todos na mesma toada.
Noite em chamas é o mais diferente de todos e demonstra a versatilidade do cineasta. Uma adaptação do filme catástrofe para o modelo de produção da Boca do Lixo, ou seja, com baixo orçamento e mínimos efeitos especiais. Derivado de Inferno na torre (The Towering Inferno, 1974), de John Guillermin, e inspirado pelos incêndios nos edifícios Andraus (1972) e Joelma (1974), Noite em chamas é muito mais interessante se pensado como um microcosmo da São Paulo dos anos 1970. O longa se passa em uma noite fatídica no Passport Hotel, uma hospedagem de luxo no centro de São Paulo, por onde desfilam os mais diversos tipos e histórias. Da madame que prefere o poodle francês ao marido à conferência do pregador gringo, da celebração de dois amigos interioranos com quatro prostitutas ao jornalista em busca do assassino do momento, escondido ali. Há ainda espaço para a história de uma atriz em depressão, um marido obrigado pela esposa a terminar com a amante, o fascínio de um fazendeiro pela fertilidade de seu boi e a revolta do funcionário da manutenção com sua situação trabalhista.
O mosaico não permite grande profundidade às historietas, mas denota o talento de Garrett para trafegar em diferentes gêneros e registros (drama, farsa, thriller, policial etc.), destacando a pluralidade do elenco da Boca – Maria Lúcia Dahl, Helena Ramos, Zilda Mayo, Patrícia Scalvi, Lola Brah, Sérgio Hingst, Roberto Maya, Walter Portella, Benjamin Cattan, Heitor Gaiotti, Tony Ferreira, entre muitos outros. Subjacente a todas as tramas – e talvez influenciado pelos parceiros de roteiro Luiz Castellini e Carlos Reichenbach – a questão da exploração do outro, seja no campo do trabalho, da fé, do sexo, da mídia, num aceno bastante consciente ao fazer cinematográfico em que o cineasta estava inserido.
Diferentemente de Jean Garrett, Ozualdo R. Candeias (c. 1918/1922 – 2007) pouco se ajustou ao cinema popular erótico realizado na Boca, o que refreou sua carreira, embora tenha dirigido dois longas para David Cardoso, incluindo a primeira produção da DaCar, Caçada sangrenta (1974). No entanto, é difícil dissociar Candeias da Boca do Lixo. Ele não só foi um dos primeiros cineastas a se instalar na região, como foi um defensor da Boca e seu principal historiador. Por anos, documentou com fotografias e filmes aquele cinema, em suas particularidades e personagens, com destaque para o livro Uma rua chamada Triumpho (2001) e para o curta Bocadolixocinema (1976).
Candeias ocupa hoje um lugar de destaque na cinematografia brasileira, devido, em especial, aos seus primeiros longas, marcos do cinema moderno ligados ao chamado Cinema Marginal, que incluem A margem (1967), Meu nome é... Tonho (1969) e A herança (1971), além do média Zezero (1974), que ajudaram a consolidar a Boca do Lixo como sede do cinema paulista. A recusa em seguir códigos estilísticos de um cinema normativo, clássico e em conformidade com a moral vigente, rendeu ao cineasta a pecha de primitivo, um mecanismo antiquado de reação à transgressão e à ruptura que também havia sido utilizado com José Mojica Marins e seus filmes protagonizados por Zé do Caixão. Nos anos 1960, cineastas como Mojica e Candeias alargaram as possibilidades do fazer cinema em São Paulo, com baixo orçamento e muita inventividade, inaugurando uma nova fase da produção da Boca do Lixo. E, aqui, cabe um parêntese: parece sugestivo que os dois principais professores de Jean Garrett, em seu começo de carreira nos anos 1960, tenham sido justamente Mojica e Candeias, demonstrando ao jovem aprendiz uma miríade de possibilidades cinematográficas.
Quando lançou A margem, Candeias já beirava os cinquenta anos de idade, o que realçou aspectos de sua biografia tidos como estranhos à trajetória de um cineasta. Ele fora caminhoneiro, chofer de praça, oficial do Exército e da Aeronáutica, entre outros, dando a impressão que chegara ao longa-metragem quase por acidente. Candeias, no entanto, percorreu um longo caminho até A margem. Comprou uma câmera Keystone 16mm no início dos anos 1950 e passou esse intervalo se aperfeiçoando, o que rendeu uma série de curtas-metragens documentais, institucionais e de cinerreportagens, como diretor, diretor de fotografia e/ou assistente nas mais variadas funções. Entre 1955 e 1957, cursou o Seminário de Cinema, do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Quando realizou A margem, já era, portanto, um veterano, com formação específica e mais de dez filmes como diretor, todos, ainda hoje, muito pouco conhecidos.
O primeiro deles, Tambaú (1955), nasceu da repercussão midiática da atuação do Padre Donizetti na cidade de Tambaú, no interior paulista. A fama de milagreiro rendeu romarias à cidade rural entre 1954 e 1955. Estima-se que, nesse período, ela recebia 20 mil pessoas por dia, número quase três vezes maior do que sua população. Em 30 de maio de 1955, Padre Donizetti, beatificado em 2019, anunciou que daria sua última benção em público. O evento foi uma comoção, levando de 200 a 250 mil pessoas ao município, entre elas diversos cineastas e cinegrafistas. Buscando se iniciar profissionalmente, percebe-se o que atraiu Candeias ao tema, capaz de convencer o negociante de película 16mm R. P. Dimberio a financiar a reportagem. Talvez ele não contasse que a cidade dos milagres renderia tantas outros documentários, como os longas A benção miraculosa em Tambaú (1955), de J. F. Campos, Rosas no céu, milagres na terra (1955), de Alberto Pieralisi, e O poder da fé (1955), de Alexandre Wulfes, o mais bem sucedido comercialmente dos três, além do curta Última Bênção em Tambaú (1955), de Primo Carbonari, entre outros, realizados por profissionais muito mais integrados ao mercado de então e lançados logo em seguida para capitalizar no interesse público.
Diferentemente de seus pares, Candeias não parecia interessado no Padre Donizetti, que mal figura no curta, ou mesmo no discurso da fé e do milagre, tão forte no filme de Wulfes, por exemplo. Ele é atraído pelo entorno do fenômeno: a movimentação, a espera, o comércio paralelo religioso. O olhar de Candeias é a frente de seu tempo, um prenúncio do que desenvolveria em sua carreira, preocupado com as pessoas humildes, ali em busca da cura. O diretor filma seus rostos, seus corpos; a miséria e o desespero humano negligenciados pela saúde pública. A câmera na mão tremula frente ao emaranhado de pessoas, mas o cineasta não arrefece e permanece com elas. O registro cru e sensório perpetua a presença dessas pessoas que parecem ter sido esquecidas por Deus, como tanto faria em seus documentários quanto em suas ficções – vide Aopção ou As rosas da estrada (1981), um retrato sobre a prostituição nas estradas que lhe rendeu o Leopardo de Bronze em Locarno.
Tambaú provavelmente não circulou como Candeias gostaria, mas se tornou seu cartão de visitas. Permitiu, por exemplo, que dirigisse os institucionais Poços de Caldas (1956), para o Sesi, e os mais ambiciosos Polícia feminina (1960), Ensino industrial (1962) e Rodovias (1962), para o Governo do Estado de São Paulo. O destaque fica por conta de Polícia feminina, que apresenta a um grande público a inclusão de mulheres nas forças policiais do Estado de São Paulo. Hoje tal presença pode não soar como algo especial, mas o curta reforça a medida pioneira no Brasil e na América Latina da polícia feminina, então com apenas cinco anos de existência. Além do tema, vale descobrir o filme em perspectiva à obra do diretor. Polícia feminina dramatiza, com a atriz Irene Kramer, o cotidiano desse braço. Candeias, visto como um naïf, demonstra artesania técnica e formal, num domínio da linguagem clássica, exercício raro em sua filmografia, provando que sua estilística era deliberada.
Candeias começou no cinema no mesmo momento que a Boca do Lixo dava seus primeiros passos rumo à produção. A alcunha, oriunda das crônicas policiais, ainda não tinha pegado propriamente, mas o que motivou a ida da prostituição e da criminalidade para a região da Luz foi a mesma que fez com que as distribuidoras sediassem seus escritórios por ali a partir dos anos 1920: a proximidade com as estações ferroviárias. Para o cinema, significava a facilitação e o barateamento do transporte dos filmes para outras praças. A produção só veio em meados dos anos 1950, com a Cinedistri, de Oswaldo Massaini, uma distribuidora que viu a vantagem de produzir os próprios filmes, como O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte, o único longa brasileiro a ganhar a Palma de Ouro em Cannes. Quando Candeias migrou para a Boca, no final dos anos 1960, carregando com ele associados diversos como Mojica, Cervantes, Garrett e vários outros, uma nova cena se instaurava. A Rua do Triunfo e seu entorno conjugava tudo que fosse necessário para fazer cinema. Não só produtoras e distribuidoras – e a locadora de equipamentos de Honório Marin nas cercanias –, como os bares Soberano e Ferreira, que passaram a ser os pontos de encontro dos profissionais de cinema, fossem diretores, roteiristas, atores ou técnicos, pensadores e críticos, ou também aspirantes. Uma ideia poderia se tornar uma produção em uma tarde, com equipe e orçamento fechados, e dia certo para começar as filmagens. O processo era intenso e rápido. ´
O fértil período de 1967 a 1972 foi de experimentação. Cineastas e produtores testaram abordagens e gêneros diversos, promoveram atores e técnicos, rumo à consolidação do cinema paulista. O Cinema Marginal revelou não só Candeias, como também Rogério Sganzerla e Carlos Reichenbach, entre outros, com profícuas trajetórias. Com seu sócio Alfredo Palácios, Antonio Polo Galante logo se tornou o principal produtor da Boca, rivalizando com Massaini. Profissionais tarimbados, forjados nos grandes estúdios dos anos 1950 – Vera Cruz, Maristela e Multifilmes – e no cinema independente, foram promovidos na hierarquia – como o próprio Galante, que começou como faxineiro na Maristela –, talvez a característica trabalhista mais fascinante da Boca do Lixo. Todo mundo poderia ter sua chance ali, sem necessidade de formação específica, contatos ou afins.
A partir de 1972, com o sucesso do cinema erótico, ficou cada vez mais frequente a utilização de títulos apelativos, nudez feminina e cenas de insinuação sexual para promover os filmes. Uma fórmula certeira em termos de público, que garantiu a prosperidade financeira de diversos profissionais, bem como a sustentabilidade do modelo, mantido pelos próprios produtores, por investidores privados, como pequenos comerciantes, e pela participação dos exibidores na produção, sem depender de subvenções estatais. Embora parte da produção se conformasse em apenas seguir as diretrizes básicas, diversos cineastas as extrapolaram em termos técnicos, estilísticos e narrativos. A prerrogativa do erótico rendeu o termo pejorativo pornochanchada para os filmes, independentemente de serem ou não comédias. A Boca do Lixo produziu longas dos mais variados gêneros. Garrett, Khouri, Alfredo Sternheim, entre outros, se notabilizaram pelo melodrama; Carlos Coimbra, Tony Vieira e Rubens da Silva Prado pelo faroeste; Clery Cunha e Francisco Cavalcanti pelo policial; Mojica e John Doo, pelo horror; José Miziara e Roberto Mauro pela comédia. Outros, como Reichenbach, Oswaldo de Oliveira, Ody Fraga, Antonio Meliande, David Cardoso, Cláudio Cunha e Fauzi Mansur, eram polivalentes, trafegando entre diferentes gêneros. E havia também os filmes sem erotismo, como os dramas rurais de Jeremias Moreira Filho.
Embora as obras fossem extremamente artesanais na feitura, seu êxito deu à Boca do Lixo um caráter quase industrial – em 1981, por exemplo, a região foi responsável por 55 dos 80 longas realizados no Brasil. Isso englobava uma imprensa correlata, como a revista Cinema em Close-Up, entre outros, e um star system próprio, que mobilizava o público. Atores como David Cardoso, Tony Vieira, Nuno Leal Maia, Ewerton de Castro, Antonio Fagundes, Sergio Hingst, Roberto Miranda, Mário Benvenutti, protagonizaram dezenas de películas. No entanto, foram as atrizes as principais responsáveis pelo sucesso do cinema da Boca: Helena Ramos, Matilde Mastrangi, Aldine Muller, Nicole Puzzi, Zilda Mayo, Patrícia Scalvi, Neide Ribeiro, Claudete Joubert, Vanessa Alves, Misaki Tanaka, Adele Fátima, Meyre Vieira, Sandra Graffi, Kate Hansen, Débora Muniz, e muitas outras.
A partir de 1982, com as bilheterias polpudas do japonês Império dos sentidos (Ai no korīda, 1976), de Nagisa Ōshima, e do brasileiro Coisas eróticas (1982), de Raffaelle Rossi e Laente Calicchio, o mercado exibidor passou a exigir cada vez mais filmes com cenas de sexo explícito. Muitos diretores e técnicos migraram para o formato, mas o modelo se tornou insustentável frente à concorrência com as obras estrangeiras de baixíssimo custo, que, junto a fatores outros como a inflação galopante, o home video, o fechamento dos cinemas de ruas etc., encerrou esse rico período do cinema paulista. Hoje nos resta esse legado, um tanto obscuro e desconhecido, mas muito impressionante e plural, capaz de congregar cineastas tão diversos como Ozualdo Candeias e Jean Garrett. 35 anos de cinema paulista a serem (re)descobertos.
Gabriel Carneiro é jornalista, escritor, crítico e pesquisador de cinema. Doutorando e Mestre em Multimeios pela Unicamp, com pesquisas sobre aspectos da história do cinema paulista. Sócio fundador da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Escreveu, entre outros, para a Revista de CINEMA e para os sites Cinequanon e Revista Zingu!, do qual foi editor-chefe. Tem textos publicados em livros, coletâneas e catálogos diversos. Coorganizou os livros Animação brasileira (2018, 2025), Curta brasileiro (2019) e Cinema fantástico brasileiro (2024), pertencentes à coleção 100 Filmes Essenciais (Abraccine/Letramento). Dirigiu e escreveu os curtas Aquela rua tão Triumpho (2016) e Esboçando Miziara (2020), entre outros. Estreou no romance com Olhando para as estrelas só vejo o passado (Patuá, 2023).