Alessandro Gamo. Ozualdo R. Candeias - 80 Anos. São Paulo: CCBB-SP, 2002.
"(...) o curta-metragem Tambaú foi o primeiro trabalho realizado por Ozualdo Candeias. Filmado em 16mm, podemos perceber nele duas características da obra de Candeias: a atenção dada aos deserdados da sorte, miseráveis que tentam se agarrar a qualquer fio de esperança, e uma dose de ironia presente nos comentários do narrador e em certas associações de imagens, conseguidas por uma montagem às vezes provocativa (...). Candeias aproveita também para mostrar que por trás de tudo há uma ordem. Seja na venda de santinhos, no florescente mercado de albergues ou na presença de autoridades da terra na praça da cidade. Quando finalmente o padre aparece na frente dos romeiros, há um corte para a imagem de uma caixa onde é coletado o dinheiro dos fiéis, e durante a fala dele, pétalas de rosas são jogadas de aviões. A crítica ao aproveitamento da fé, presente neste primeiro filme de Candeias, cria um interessante paralelo com outros momentos da obra do cineasta: o padre com uma lista telefônica de A Margem, os pregadores de Aopção e As Belas da Billings e a cena em Aparecida, em Aopção"
Ody Fraga. Leitura Ano II, nº 24, maio de 1984.
“Candeias, o pioneiro. Discordando do esteticismo visual do curta-metragem brasileiro que começou com Lima Barreto, e fazendo da câmara parte integrante da realidade, Ozualdo Candeias foi o iniciador da estética cinematográfica que teve um grande futuro: a do terceiro mundo. Quando Ozualdo Candeias estreou em cinema com o documentário Os Milagres de Tambaú, o grande movimento de crença popular em torno do Padre Donizetti, já estavam presentes todos os elementos de uma estética cinematográfica da qual se viria a falar e teorizar muitos anos mais tarde: a do terceiro mundo. O tema do filme, realizado em 16mm, talvez não fosse assunto de eleição mas questão de oportunidade para dizer. Como o problema estava na ordem do dia do interesse popular e nas manchetes dos jornais, Candeias encontrou seu primeiro produtor, Hermógenes Rangel, que se dedicava ao eterno subproduto do cinema brasileiro: o jornal cinematográfico. Havia em Os Milagres de Tambaú dois aspectos que de imediato me chamaram a atenção e intrigaram: a) A queda de um esteticismo visual um tanto gratuito que vinha dominando o curta-metragem brasileiro, notadamente a partir da grandiloquência barroca de Lima Barreto (Painel, O Aleijadinho). Uma sistemática deslumbrada pelo formalismo permitido pelas conquistas tecnológicas e artesanais advindas com a Vera Cruz. Era um cinema arquitetônico, apaixonado pelas enquadrações pomposas e certa montagem de ritmo de efeito, arbitrário, bonito mas não-orgânico. alguém aprendeu alguma coisa sobre a pintura de Portinari com Painel? O filme de Candeias quebrava esse alumbramento estetizante que se manifestava principalmente no documentário (uma vez que ele não tinha compromisso nenhum com a bilheteria) e jogava nas telas uma imagem diferente. Diferente porque brasileira e, por brasileira, estranha. Os nossos caboclos pareciam caboclos nossos e não mexicanos de Eisenstein. b) O filme colocava igualmente outro elemento muito simples: o povo dizia o que era e como era pela imagem, puramente. Vivia sua condição humana. Ele era constatado e vivenciado pela câmara. Uma maneira cinematográfica de pensar a realidade. Em nenhum momento acontecia o monótono expediente Globo Repórter de se colocar um microfone na mão e fazê-lo falar induzido pelo condicionamento do diretor e da própria situação de filmagem, a condição ideológica do depoimento. Os Milagres de Tambaú era estruturado de maneira simples. A câmara tomava um trem de romeiros e ia para Tambaú à procura da benção milagrosa do Padre Donizetti. Ela, porém, não era um elemento estranho àquela realidade, era parte integrante dela. Como qualquer um dos romeiros, via os outros e com eles se relacionava. Cumpria seus ritos. Chegava, participava da espera, da expectativa, da emoção. Integrava-se ao povo como povo no momento culminante quando o Padre Donizetti aparecia em público e dava sua bênção sobre um mar de garrafas com água, erguidas sobre cabeças para receberem a radiação milagrosa que emanava das mãos do padre que o povo acreditava santo. Durante essas bênçãos, também, deveriam acontecer os milagres propalados. Nessa ocasião, nem o povo, nem parte dele, a Câmara, nada viram. Depois era o retorno à mesma realidade do cotidiano de sempre. No arremate, o filme constatava amarga ironia: todos voltavam exatamente como chegaram. Os Milagres de Tambaú foi o primeiro filme sociológica e filosoficamente “terceiro mundo” a que assisti. Não se falava nisso então, pois Candeias explodia essa verdade quando o Brasil vivia, na plena euforia da era Juscelino, o grande boom do desenvolvimento, e o sofrido nordestino havia-se transmudado no grande herói épico chamado candango. Depois veio o que veio… (...)
Vitor Angelo. Ozualdo R. Candeias - 80 Anos. São Paulo: CCBB-SP, 2002.
“(...) Chamam Candeias de 'primitivo’ por desconhecerem seus primeiros documentários, principalmente Polícia Feminina. Nesse filme sobre o papel da recente corporação, Candeias não descuida da luz, do campo e contra-campo e de uma montagem mais bem comportada, em se tratando do cineasta. Tudo está a favor de um cinema mais clássico, muito diferente do que encontraremos depois em sua obra. Sentimos nesse pequeno documentário não um ensaio para o caminho formal que seu cinema irá tomar a partir da metade dos anos 60, mas sim um estudo pra melhor captar a realidade. Tema tão caro e indissociável de sua obra. Chamam Candeias de ‘primitivo’, mas eu prefiro chamá-lo de mestre."
Ozualdo Candeias. FORUMDOC.BH.2009, FESTIVAL DO FILME DOCUMENTÁRIO E ETNOGRÁFICO. Belo Horizonte, 2009
"(...) Aí fiz uns documentários que ninguém queria fazer porque é muito mal pago. O Jacques Deheinzelin viu uns documentários meus, ficou entusiasmado pra burro com o negócio, como que eu conseguia fazer aquilo. Tudo máquina na mão. É que eu ficava fazendo experiência, de montagem, de não sei o que e tal. Aí eu pensei: “O negócio é fazer um longa-metragem'. Mas na verdade não tinha uma necessidade muito grande, aquele negócio de dizer que eu tinha o que dizer. Não tinha nada disso, não. Pra mim era muito bom estar fazendo essas coisas de lá pra cá, filmar etc e tal, dirigir documentário. Aí fiz um documentário também todo interpretado, o primeiro que eu fiz assim interpretado. Foi Polícia Feminina pro Governo do Estado. Quem me deu na mão o negócio foi Plínio Sanches e o Jacques Deheinzelin, porque tinham gostado muito dos negócios meus. Fiz todo ele interpretado de propósito. Foi minha primeira tentativa de trabalhar com atores, se bem que nos documentários que eu fazia eu já botava todo mundo interpretando.”
Rubem Biáfora. O Estado de S. Paulo, 29/05/1977.
“Longe da bitola do estrelismo narcísico-comercial de David Cardoso ( A Ilha do Desejo, Amadas e Violentadas, Possuídas pelo Pecado, obras que no entanto facultam sua revelação e os indícios de uma tendência plástico-formal para situações efeitos sado-erótico-masoquistas), com Excitação o jovem diretor Jean Garrett surpreende até mesmo àqueles destituídos de preconceitos “culturais” que conseguiram aquilatar de suas potencialidades em melhores circunstâncias. Pois elas se impõem neste novo filme, o mais profícuo e caprichado que M. Augusto Cervantes produziu até hoje. Não que inexistam assimetrias, contradições e fortes lapsos de entrecho, com situações e personagens desnecessariamente tomados de empréstimos a muitas obras anteriores (Suspeita, À Meia Luz, A Teia de Renda Negra e até A Sétima Vítima, de Val Lewton). Mas é quase a primeira vez que algo saído da rua do Triunfo revela um gosto e uma capacidade de manipulação, um germe de linguagem para realizações de diverso teor: unidade, plasticidade, imaginação cinemática. Outro tento é a belíssima fotografia de Carlos Reichenbach, toda em tons neutros e esmaecidos (como se fosse concebida para a Kim Novak de Uma Vez por Semana ou a Dominique Sanda de Une Femme Douce), bem dosada, atmosférica - uma das melhores que nosso cinema apresentou em muito tempo. Sugestiva também a escolha de locais “marinhos” e o emprego das roupas (ponto sempre ridículo nas fitas nacionais do atual e falso “boom” comercial). Inesperadamente efetivo o “modernoso” comentário musical de Beto Strada. E só dignas de elogios as atuações de Kate Hansen com sua entrega e Betty Saddy com seu “charme” carioca, ainda que seja de lamentar as poucas oportunidades a Liana Duval e Abrahão Farc. Não há engagement, falta certamente o grande entrecho, mas é flagrante uma capacidade de vir à tona para as exigências visuais expressivas e atmosféricas do cinema. E isso é muito.”
Edmar Pereira. Jornal da Tarde, 02/06/1977.
“Uma história antiga, recontada com tensão e sensualidade. Uma mulher loura e bonita (como Joan Fontaine, em Suspeita; Ingrid Bergman em À Meia-Luz; Doris Day em A Tenda de Renda Negra, entre outras) é levada pelo marido para uma deserta casa à beira-mar. Lá, ela irá se recuperar de frequentes crises nervosas, possivelmente estimuladas pela tensão da grande cidade. O marido é um homem lógico e racional, apaixonado por computadores e, como se verá, um antidivorcista tão fanático que recorrerá aos mais inacreditáveis métodos para se livrar da mulher sem que se quebrem os indissolúveis vínculos do matrimônio. Há ainda a vizinha, uma viúva carente de afeto e reprimida; sua prima que chega inesperadamente com uma sofreguidão erótica proporcional à desenvoltura do seu comportamento; um pescador disfarçado de voyeur, ou vice-versa; e, finalmente, o espectro do marido da vizinha, que cometera suicídio movido pelas desleais informações de um computador manipulado. Na ignorância de proverbiais sutilezas do nosso modelo econômico, ao deparar com uma ameaça de falência em sua empresa prefere salvar tragicamente sua honra. O anacrônico comportamento deste personagem é, aliás, inteiramente coerente com todo o clima da produção, que na sua falta de jeito de reverenciar o cinema do passado acaba fazendo imitações sem qualquer constrangimento ou originalidade. Nada de novo, certamente. Mas, em compensação, nada de agressivamente ruim ou excessivamente mal realizado. Descontando-se a implausibilidade ingênua do seu roteiro (escrito em parceria com Ody Fraga), o diretor Jean Garrett (ex-responsável pelos delírios narcisistas do produtor e ator David Cardoso) mostra-se um razoável artesão. Excitação é um filme que consegue frequentemente envolver sua plateia numa atmosfera de mistério e ameaça, cria situações tensas e explora muito bem a sensualidade que elas comportam, assim como sabe aproveitar-se, sem qualquer vulgaridade, do inegável sex appeal de suas atrizes. O bom acabamento, a produção de nível profissional aceitável, ainda são acontecimentos incomuns no cinema nacional feito para o grande público, especialmente quando produzido em São Paulo. Pena que isto e mais a evidente competência do diretor Garrett - que consegue assustar até com fantasmas eletrodomésticos, sem provocar risos - não tenham sido utilizados sobre material de melhor qualidade. E este não é o único desperdício de Excitação: sua fotografia, do multitalentoso Carlos Reichenbach (diretor do curioso Lilian M., e co-roteirista do eletrizante Vítimas do Prazer) está entre as melhores já vistas em qualquer filme brasileiro.”
Jairo Ferreira. Folha de São Paulo, 07/06/77.
“Equilíbrio entre o suspense e o erotismo. Um bom exemplo de que cinema não se faz com boas intenções e muitas “ideias” na cabeça, mas sim com talento: Excitação (em cartaz nos cines Marrocos, Augustus e Gazetinha/Centro), o melhor filme de Jean Garrett, um cineasta que já estava acima da média (A Ilha do Desejo, Amadas e Violentadas) e que, a partir de agora, pode ser considerado como o Claude Chabrol do cinema brasileiro. Desde que João Silvério Trevisan “fechou” a Boca do Lixo com o antológico Orgia (1971), não se via um filme tão talentoso no cinema local. A trama é relativamente simples: numa mansão do litoral, uma jovem esposa (Kate Hansen) é perseguida por eletrodomésticos que funcionam sozinhos. O detalhe esclarecedor é que um homem se enforcou nessa casa casa há tempos atrás. O que é isso? O Inquilino, de Roman Polanski, antes do próprio O Inquilino? Não necessariamente, mas os pontos de contato são inegáveis. O nível de problemas paranormais é patente, o mistério atinge alta densidade dramática e o suspense vai num crescendo do início ao fim. “Nem parece filme nacional”, comentou um espectador logo na apresentação, onde há um super-detalhe do olho humano, fixando-se na íris. Os letreiros vão surgindo lentamente numa trucagem muito bem feita e com uma música de grande peso dramático. A narrativa começa a se impor a partir das primeiras imagens, onde os movimentos de câmara são perfeitos e a montagem é exata, relembrando os melhores cortes de Eizo Sugawa e Edouard Molinaro. Pode parecer exagero, mas não é: Jean Garrett é a mais grata revelação do cinema nacional nos últimos anos. Talento deflagrador, o jovem diretor, nascido em Portugal, tem um apurado senso de narrativa, conseguindo envolver tanto o grande público quanto os espectadores mais exigentes. Ele preferiu uma trama simples, mas que vai se tornando complexa à medida em que a atmosfera dramática ganha consistência. Trata-se de uma concepção formalista, no bom sentido do termo. A ideia inicial é plenamente desenvolvida pela narrativa, abrindo uma ampla área de sugestões para o espectador. A paranoia da personagem, perseguida pelos eletrodomésticos, vai aumentando gradualmente no decorrer do filme. Ela tem certa lucidez, no início, mas ficará totalmente louca ao final. Há outro ponto de contato com Eizo Sugawa, o terrível cineasta japonês, que Jean Garrett talvez nem conheça: a polícia só entra no filme para levar os cadáveres e os crimes podem não compensar, mas ficam impunes, como em Morte a Fera, de Sugawa. A fotografia de Carlos Reichenbach, o Jean Rabier brasileiro, é uma das mais criativas do momento, impondo-se funcionalmente pelo tom mórbido que a trama exigia. A montagem de Walter Wani é uma verdadeira joia, acentuando o clima com ruídos eficientes, cortes secos e precisos. A música funciona do início ao fim. E Kate Hansen tem uma de suas melhores interpretações, longe da petrificação khouriana. E há outro detalhe importante: pela primeira vez em muitos anos, o erotismo não surge gratuitamente na tela, mas sim dentro do contexto dramático do litoral, fotografado na penumbra. O único “porém” é o título, Excitação, ruim de doer, escondendo o ouro criativo. Em suma: Excitação é uma surpresa total. Um filme que satisfaz plenamente. Não só pela perfeição da imagem, mas também do som. A qualidade da projeção, no cine Marrocos, melhorou assustadoramente. E o som é uma revelação: entende-se absolutamente tudo que os atores falam. O espectador sai do cinema com a impressão de ter assistido a um dos melhores filmes do ano. Não perca."
Jean-Claude Bernardet. Movimento nº 105, 04/07/1977.
“19 Mulheres e Excitação. (...) O interesse de Excitação - filme de Jean Garrett, com Kate Hansen e Flávio Galvão - como documentário sociológico me parece prender-se a três pontos: a sua ligação com um tema do tradicional folclore (não só) brasileiro; sua ligação com o moderno e internacional folclore cinematográfico, cujo efeito é fazer de Excitação um filme atualizado e mascarar a ligação com o folclore tradicional; o terceiro ponto é a presença ambígua de um representante das modernas classes médias, um especialista em computação. O enredo resumido: para livrar-se da esposa e se ligar a outra mulher, o tal especialista programa um computador de tal forma que os aparelhos eletrodomésticos da casa agridam a esposa. O processo deve continuar até a esposa perturbar-se, ficar louca e ser internada. O espectador só toma conhecimento desta armadilha no final do filme, podendo interpretar a atuação dos eletrodomésticos como alucinações da esposa. No final, como morta-viva, a esposa volta, os eletrodomésticos voltam a agredir embora esteja desligado o computador, e ela mata o marido. Além do final moralista (o crime não compensa), encontramos neste argumento o velho tema aprendiz de feiticeiro: ele deslancha uma mágica que não controla mais e se volta contra ele. Mas o que mais chama atenção é a trama tipo hitchcockiano: o espectador vê se desenrolar uma série de fatos, cuja causa só lhe será revelada no final, causa que deve ser em princípio diferente das hipóteses que ele terá imaginado. Mais especificamente, este enredo é quase uma reprodução da trama do filme de Clouzot, As Diabólicas, em que um marido cria situações terríficas que devem provocar um susto mortal na esposa doente do coração. Ou uma reprodução do filme americano de Curts Huntington, O Terceiro Tiro (Games). Neste sentido, Excitação confirma mais uma vez que todo um filão do cinema comercial brasileiro reproduz formas de efeitos comprovados do cinema internacional. Com a finalidade de satisfazer os hábitos de espetáculo criados pelo cinema importado e apresentar o produto brasileiro como moderno e atualizado. Outro aspecto pelo qual o filme apresenta-se como atual é a sua temática: o protagonista central tem uma profissão considerada moderna: computadorista. O instrumento do crime é a própria sociedade de consumo. São estes objetos que a classe média sua para comprar em suaves prestações, que se rebelam contra esta mesma classe média. Todo o enfoque dado ao computadorista e aos objetivos de consumo é ambíguo. Por um lado, tudo isto é muito sedutor: a casa é confortável, o especialista é prestigiado, as mulheres bonitas. “Gente muito importante”, diz um personagem popular. O computador é o último grito em matéria de civilização. O fetichismo da máquina todo poderosa revela a satisfação em pertencer à fase mais moderna do desenvolvimento capitalista. Até agora, no cinema paulista, o personagem em dia com o capitalismo era um empresário visto no seu escritório, com suas secretárias e telefones. Em Excitação, o empresário foi substituído por um “trabalhador intelectual” bem sucedido, porta estandarte das novas classes médias. Sedutor, mas ameaçador: não só porque os ventiladores agridem os ventilados, também porque o computadorista é criticado no filme: ao seu frio desumanismo, uma secretária opõe um lugar comum do tradicional humanismo: sua confiança nos Homens. O que não é para levar muito a sério, pois trata-se de uma piada: às máquinas, a secretária prefere os homens. Uma atitude ambivalente em relação ao capitalismo: sedutor e esmagador, sem que esta atitude constitua um ponto de vista crítico. Essa ambivalência na própria estrutura do filme. Pois, se Excitação está baseada num modelo hitchcockiano, nem por isto consegue imitar o modelo até o fim. A diferença básica e significativa, ao nível do argumento, entre Excitação e seu modelo, é que, neste, a revelação final oferece uma solução lógica, uma explicação racional às situações desenvolvidas no filme. O espectador deve ser convencido pela lógica. Esse racionalismo do desenlace, essencial no modelo, não é mantido aqui. Primeiro porque é difícil aceitar que o computador faça aquelas maravilhas todas, mais difícil ainda aceitar que ele seja responsável pelos aparecimentos do sujeito que se enforcou na casa antes da chegada da esposa. A ação do computador, apesar da pouca convincente explicação racional que o filme tenta dar, é mágica. Aliás, o próprio computadorista chama o aparelho de “substituto dos feiticeiros”. E porque o desenlace final, a punição do criminoso, é francamente sobrenatural. Aí pode-se abordar outro aspecto de Excitação: o que há por baixo dos eletrodomésticos e do computador? Um velho tema tradicional: a casa mal assombrada. Antes da esposa tomar posse da casa, houve um suicídio, e mil coisas assombrosas acontecem aos novos moradores, o fantasma do suicida aparece. O velho tema sugere um casarão antigo, penumbroso. Aqui, a casa é moderna, luminosa. As portas não rangem, mas os liquidificadores são histéricos. A diferença é pequena, mas essencial: ela ilustra um processo de atualização. Não se cria propriamente uma nova temática, nem uma nova dramaturgia. Reveste-se com roupagem modernosa temas antigos. Mas, quem acaba tendo a última palavra, acredito, é a tradição. O filme não sustenta a proposta lógica até o final; e pelo viés do mais tradicional sobrenatural que os eletrodomésticos voltam a enlouquecer, e é pelo sobrenatural que chega o castigo com que se encerra o filme".
Carlos M. Motta, 17 de Setembro de 1978.
"O cinema paulista se curva diante das exigências da superprodução. E Jean Garrett que de certa forma é um angry e tende para os assuntos com ingredientes escabrosos, utiliza aqui um esquema que vem do Grande Hotel. E naturalmente de O Inferno na Torre e sua imitação americana mesmo, Fogo na Torre, exibida no Marrocos em 76. Um aglomerado de personagens, de empregados a hóspedes de um hotel do centro. Entre os quais uma dama solitária (Lola Brah) que transfere toda a sua potencialidade afetiva a um cachorrinho. E um coronel do interior interpretado por Guilherme Correa, ao que parece o melhor do elenca embora esteja mais de acordo com as intenções do realizador. O esforço de produção inclui carros se incendiando, corpos despencando etc."
Autor não informado. Folha da Tarde, 13/09/1978, p. 26.
"Tensão em filme de Jean Garrett. Em matéria de tensão no cinema, os norte-americanos ganham de longe. Não obstante a eficiência francesa, italiana e sobretudo inglesa demonstrada no gênero, é em Hollywood onde se faz as melhores realizações dessa linha. É que além da capacidade, eles lá tem muito dinheiro. Daí serem poucos os que se arriscam entre nós nesse filão. Quase todos temem as comparações, principalmente diante dos retumbantes êxitos de filmes como O Destino do Poseidon e Inferno na Torre. Mas Jean Garrett parece que não se atemorizou com o que poderão dizer dele nesse sentido. Por isso partiu para a realização de Noite em Chamas, que estréia na próxima segunda-feira em São Paulo. Trata-se de uma película centralizada em um grande hotel, em um determinado dia, onde além dos hóspedes com seus problemas, aparecem também diversos funcionários. E um deles, chega ao local de trabalho com a finalidade de incendiá-lo. A tensão da narrativa vem menos de efeitos bombásticos e mais do ritmo obtido no entrelaçar dos personagens e conflitos, os mais variados possíveis. Enquanto que alguns são mostrados com ironia e até comicidade (o casal abalado pelo cão), já outros são expostos em tom dramático, principalmente a motivação principal da conduta de “João”, o funcionário que prepara o incêndio. Nascido no arquipélago de Açores, Jean Garrett está há muito no Brasil. Depois de ter atuado em diversas categorias (assistente, fotografia de cena etc.) em vários filmes, ele fez sua estréia como diretor em A Ilha do Desejo, que David Cardoso produziu e interpretou. Posteriormente fez Amadas e Violentadas, Possuída pelo Pecado e Excitação” esta última produzida por Miguel Augusto de Cervantes. Este é também o produtor de Noite em Chamas, realização de fôlego que reune quarenta e cinco intérpretes, destacando-se Tony Ferreira, Maria Lúcia Dahl, Ricardo Petraglia, Zilda Mayo, Roberto Maya, Lola Brah, Benjamin Cattan, Helena Ramos, Renato Master, Malu Braga, Guilherme Correa, Maracy Mello, Denis Derkian, Patricia Scalvi, Washington Lasmar, Carlos Reichenbach Filho, Osley Delamo, Heitor Gaiotti, Sérgio Hingst, David Neto, Pedro Stepanenko, José Roberto Giusti, José Julio Spiewack, João Paulo, João Maya, Romeu de Freitas, Walter Portela, Paulo Domingues, Luis Badaró, Genesio de Carvalho, David Hungaro, Jassa, Sônia Guedes, Marisa Fonseca, Celina de Castro, Vera Lyze, Waldir Siebert, Wilma Camargo, Alair Norton, Oswaldo Avila, Mário Bruni, Marcos Ricciardi. Com argumento do próprio diretor e Luis Castellini, Noite em Chamas conta com fotografia em cores de Reynaldo Paes de Barros, montagem de Alain Fresnot, música de Mário Bruno Carezatte, cenografia de Paulo Henrique, maquiagem de Mário Lúcio e Antônio Abade, e a colaboração de Carlos Reichenbach Filho no roteiro.”
Jairo Ferreira. Folha de São Paulo, 18/09/1978.
"Inferno na Torre de Jean Garrett. As comparações são sempre perigosas, mas neste caso inevitáveis: Noite em Chamas, superprodução paulista que estréia hoje. Já é a versão local de O Inferno na Torre, a superprodução hollywoodiana que havia dado muito pano pra manga há três anos atrás porque parecia ser inspirada nos incêndios Andraus e Joelma. O que diz o diretor do filme Jean Garrett? - Quero ser acusado de tudo, menos de colonialismo cultural. Não imitei o Inferno na Torre americano. Acho que tenho competência suficiente para assimilar influências, o que é diferente e, obviamente, a maior delas seria mesmo das tragédias do Andraus e do Joelma. No meu filme, as motivações são completamente outras: não são engenheiros, arquitetos ou eletricistas que estão por trás do crime, mas esse personagem novo que vem surgindo no cinema brasileiro, o homem urbano pressionado pela máquina social. Português loiro de olhos azuis, nascido na ilha das Flores, no arquipélago dos Açores, Jean Garrett veio para o Brasil em 1965, como turista e resolveu ficar. - Em Portugal, durante o salazarismo, nunca pude ver os filmes que me interessavam, pois eles eram proibidos lá. Aqui também houve e há esse problema, mas em menor escala. Na verdade, eu não teria outra perspectiva em Portugal a não ser ir lutar em Angola. Estava fazendo o curso de psicologia, mas de outro lado fiz a Academia Militar, Escola de Oficiais, durante três meses. À noite eu tinha pesadelos. Minha tendência libertária me levou a procurar outras plagas. Cheguei aqui sozinho e minha família veio logo depois. Claro que as circunstâncias políticas da época também me surpreenderam, mas mesmo assim comecei a me descobrir como homem livre. Como pesadelo atrai pesadelo, assim como violência puxa violência, Jean Garrett chegou ao Brasil e logo se identificou com a melhor imagem do pesadelo nacional: Zé do Caixão. Depois de uma experiência como fotógrafo independente, começou a trabalhar com José Mojica Marins, em 1966/67, época em que foram iniciadas as filmagens de À Meia Noite Encarnarei no Teu Cadáver. O jovem português dormia nos estúdios de Mojica, montados na famosa Sinagoga do Brás. Onde era a cama dele? Dentro do famoso caixão de Zé do Caixão, aliás, caixão nobre que, bem forrado, é inclusive cama de luxo. - Não me envergonho de nada que fiz antes ou depois de ter me tornado diretor de cinema. O que me atrai em Mojica? A força da imagem. Aquilo me fascina. Gostei muito também de trabalhar com Ozualdo Candeias, em 69, como ator de Meu Nome É Tonho e depois também como ator em A Herança, de 71. Fui ator também de Rubens da Silva Prado em Sangue em Santa Maria, de 70, mas aí não aprendi nada. O que eu sempre deixo bem claro é que nunca me arrependi de nenhuma experiência que fiz: todas foram válidas. Se eu não experimentasse, não saberia como era: hoje eu sei que devo muito a Mojica e Candeias, que considero cineastas da melhor tradição. Jean Garrett foi descoberto, inicialmente, pelo grande público, por seus filmes A Ilha do Desejo (1974), Amadas e Violentadas (1975) e Possuídas pelo Pecado (1976). Nesse mesmo ano, foi descoberto também pela crítica por seu filme Excitação, logo definido como um filme de “porno-suspense”. - Acho que a pornochanchada não é nem pornô e nem chanchada, mas não recuso os rótulos. Só acho que, no Brasil, rótulos não funcionam. A minha preocupação, até Excitação, era com o que chamam de perfeccionismo. Outros me chamaram de artesão exemplar. Fiquei até perplexo com esses elogios. Na verdade, minha preocupação sempre foi com o bom acabamento. Já no meu primeiro filme, A Ilha do Desejo, dei uma grande ênfase na narrativa para segurar o expectador do início ao fim do filme. Sei que isso não é fácil, mas acho que consegui, depois de ver muitos filmes do Hitchcock. Há muito tempo que eu me preocupo com o problema do medo, não o medo exterior, mas o medo vindo de dentro. Isso está em todos os meus filmes. Gosto também de Godard, um pouco de Fellini, mais de Buñuel, e o Zeffirelli, por saber trabalhar bem com a emoção. Não comecei em cinema através do Super 8 ou 16/mm, mas respirando o ambiente de cinema. Sempre comi, sonhei e respirei cinema. Pra mim cinema é tudo. E quanto ao cinema nacional de hoje, acho que a fase é de se firmar no mercado e, para isso, todas as tendências são importantes. Por isso sempre defendi a pornochanchada, pois por pior que ela seja, teve o mérito de trazer o espectador de volta aos cinemas. (...) - A única coisa que eu lamento no cinema nacional é que ele não seja visto com outros olhos. Uma coisa é a realidade e outra é a realidade do mercado cinematográfico brasileiro. Um filme nacional que não tenha hoje essa vinculação com o mercado estará completamente fora da realidade cinematográfica. Com isso, só lhe restará a perspectiva de estar dentro da realidade propriamente dita. O produtor de Noite em Chamas é Miguel Augusto de Cervantes, o mesmo que produziu os primeiros filmes de José Mojica Marins, inclusive A Sina do Aventureiro (1957). O comentário de Mojica sobre o produtor já ilustra bem a situação do filme de Garrett: “Antes eu dizia: Miguel Augusto de Cervantes, o idealista; agora eu digo: Miguel Augusto de Cervantes, o comerciante”. Já Garrett diz quanto custou o filme: - Noite em Chamas custou 4 milhões de cruzeiros, incluindo a publicidade, pois hoje em dia essa é uma exigência dos exibidores. O filme tem mil figurantes, todos pagos, 45 atores com diálogos, 50 atores contratados no geral. Só de elenco gastamos 700 mil cruzeiros. As filmagens demoraram 45 dias e, depois, perdemos mais 45 dias na trucagem, com o Paulo Pichi, fazendo efeitos especiais. Conseguimos o efeito de uma mulher se esborrachando na calçada, papel feito pela Maria Lúcia Dahl. A ação se passa num grande hotel, onde acontece de tudo um pouco, formando um painel da sociedade paulista. Num dos apartamentos, uma atriz de pornochanchada tenta o suicídio, mas não é necessário ver nisso a morte do gênero. Em outros dois apartamentos, arma-se um triângulo amoroso, num terceiro começa uma festinha de embalo com algumas prostitutas. E aí acontecem fatos estranhos: irregularidades no elevador, nervosismo geral, tudo num encadeamento que culmina no final, aliás, uma neurose de massa que São Paulo já viveu duas vezes e que, daqui pra frente, espero que só aconteça mesmo em filmes.”
Alfredo Sternheim. Folha da Tarde, 26/09/1978, p. 27.
"Noite em Chamas. A receita é a mesma de vários filmes estrangeiros, principalmente norte-americanos. E consiste em reunir vários personagens de diversas tendências, com diferentes problemas e conflitos, num mesmo local que está, para os olhos do espectador apenas, na iminência de uma grande catástrofe, de um acidente de forte proporção. Assim aconteceu com Um Fio de Esperança de William Wellman, Náufragos do Titanic de Jean Negulesco, Aeroporto 75 de Jack Smight (atualmente em reprise), O Destino do Poseidon de Ronald Neame e principalmente Inferno na Torre que John Guilhermin dirigiu para o produtor Irving Allen (o mesmo de Terremoto). Noite em Chamas é filme que também se apega a esse esquema. O local em questão é um grande hotel. E entre os vários personagens destacam-se dois rapazes do interior, um rico e um pobre que juntos procuram aventuras amorosas financiadas pelo primeiro, bem como uma grã-fina que vê seu casamento ameaçado pela não aceitação por parte do marido, do afeto que dá a um cachorrinho. O lado dos hóspedes é que oferece maior número de situações, a maioria expostas dramaticamente, enquanto que outras são pretextos de momentos irônicos. Do lado do hotel, o filme centraliza-se num funcionário que movido por vingança, chega ao trabalho com o intuito de explodir com todo o prédio. Como toda a película que segue essa linha, Noite em Chamas peca pelo excesso de personagens e/ou situações, o que faz com que muitas delas não sejam bem resolvidas. É o caso daquele conflito amoroso envolvendo um casal (Renato Master e a sensível Maracy Mello) e a amante (Zilda Mayo), bem como a parte do fazendeiro (Guilherme Correa, sempre engraçado), que se alonga mais que o necessário e, consequentemente, perde no seu humor. Mas no geral, o diretor Jean Garrett dá conta do recado. Além de saber entrelaçar a maioria das situações, ele também empresa vigor à narrativa. Os cortes e angulações se harmonizam, permitem um ritmo dinâmico, um “crescendo” perfeito, sempre dentro de um tom à maior parte do tempo algo sombrio. E nesse sentido, os pontos altos de Noite em Chamas estão nos momentos finais do incendiário, na discussão entre os dois rapazes e, principalmente, no epílogo de do drama da atriz interpretada por Maria Lúcia Dahl; a última sequência dessa personagem é realmente notável no seu clima, na sua plasticidade. Bem auxiliado pela fotografia em cores de Reinaldo Paes de Barros, pela montagem de Alain Fresnot, pela música de Mário Bruno Carezzatto e por uma produção empenhada, Garrett também logrou bom rendimento do extenso elenco onde os destaques vão, além de Maria Lúcia e de Maracy Mello, para Tony Ferreira (o incendiário), Lola Brah (a mulher do cachorrinho), Benjamin Cattan (o gerente do hotel), Denis Derkian (o rapaz rico do interior) e principalmente Helena Ramos, como a mundana revoltada, oferecendo um desempenho veemente que é, talvez, o melhor de sua carreira. E claro que muitos combatem Noite em Chamas apenas pela sua proposta. Mas em vez desse desprezo que demonstram com toda película que não chega precedida das loas pré-fabricadas no Rio de Janeiro pela Embrafilme e/ou outras greis, muitos colunistas de cinema deveriam atentar para os pontos positivos da realização (que são maioria), para a garra demonstrada pela direção de Garrett que se sobrepõe à certas fragilidades do roteiro."
Jairo Ferreira. Folha de São Paulo, 09/09/1979, pg. 15.
"Parabéns Jean Garrett. Desde que realizou Excitação/1977, Jean Garrett é o melhor jovem artesão do cinema paulista. A confirmação é o seu atual Mulher, Mulher, o filme de maior depuração técnica do cinema brasileiro nos últimos anos. Movimentação de câmera digna de Claude Chabrol, com a câmera deslizando suavemente em cima de trilhos. Fotografia e iluminação admiráveis, a cargo de Carlos Reichenbach, um Jean Rabier Paulista. Interpretação surpreendente de Helena Ramos. Clima altamente poético, música sublinhando closes com talento raro. Mulher, Mulher é um belíssimo filme sobre o touch, a necessidade de contato entre as pessoas. Feminista ou não, caiu no gosto das mulheres. Detalhe importante: na última quarta-feira, Mulher, Mulher superou as rendas de 007 Contra o Foguete da Morte.”
Jairo Ferreira. Folha de São Paulo, 12/09/1979, pg. 31.
"Feminismo, objeto de prazer de Garrett. Mulher, Mulher (Marrocos. Paissandu/Império. Coral I. Gazetinha e circuito) é a síntese que faltava ao cinema paulista, ligando efetivamente seus dois pólos mais interessantes, opostos e extremos, mas nem por isso conflitantes: o cinema do corpo (José Mojica Marins) e o cinema da alma (Walter Hugo Khouri). O autor da proeza é Jean Garrett, o bárbaro, um metteur en scène de sensibilidade insuspeitada. Um jovem mestre. Estamos em pleno território da arte, onde não há concorrência, senão referências. Khouri nunca escondeu sua admiração por Bergman; Glauber nunca deixou de falar em Jean-Luc Godard; Rogério Sganzerla não consegue dormir por causa de Orson Welles; Carlos Reichenbach transpira Samuel Fuller por todos os poros. A única exceção é José Mojica Marins, cujo referencial é ele mesmo. Gênio. Vampiro cultural, que começou sua carreira dormindo no caixão de Mojica, Garrett não teve a intenção de superar Khouri, mas acaba superando o Júlio Bressane de Barão Olavo, o Horrível/71, primeiro filme a testar a síntese Mojica/Khouri. O socialismo só existe no território da arte, onde tudo é de todos - e Garrett é agora um de seus profetas. Mulher, Mulher é um dos filmes que faltava ao atual (irrespirável) cinema brasileiro por valorizar antes o significante (a maneira como diz as coisas, ou melhor, como filma) e menos o significado (o que diz em torno do modismo feminista, por exemplo). Trata-se de um filme sobre o touch, a falta de contato entre as pessoas - e como quebrar esse gelo. Quem gosta do que é bom se deliciará com closes khourianos, travellings chabrolianos e sugestões mojicais. Retido pela censura durante 5 meses, o filme terminou sendo liberado sem cortes. Agora é possível assistir ao love story de uma mulher com um cavalo. Cabe lembrar que tal “romance” já existia desde 1966, quando Khouri realizou O Corpo Ardente, onde o erotismo é na base da sugestão. Garrett dá um salto adiante: o erotismo do seu filme beira o explícito. Tudo gira em torno do Relatório Hite, mas segundo a visão do diretor que, de cara, abole o machismo e o moralismo. O papo é meio furado porque o roteiro (feito pelo diretor em parceria com Ody Fraga) deixa muito a desejar. Uma insuficiência que, felizmente, a mise en scène supera, levando o filme a uma transcendência. Não é em vão que a personagem principal se chama Alice (Helena Ramos está excepcional - pode dividir sua carreira em antes e depois deste filme). Perseguida por um gravador, ela passa de uma dimensão a outra, da realidade à fantasia, do horror à liberação e também ao crime. O espectador só descobre que o roteiro não é bom depois que o filme termina, problema que não afeta só a Garrett: o Brian De Palma de Fúria também está no mesmo caso. Não há, de resto, um grande filme sobre feminismo. Não se trata de justificar o diretor: todo esse papo em torno de feminismo também é furado. Betty Friedan dançou, Shere Hite não convence muito e Jane Fonda não tem se dado bem com o assunto. Não cabe, portanto, cobrar maior consistência de Jean Garrett, que se libera pelo cinema (“Faço cinema exclusivamente por prazer”). E o filme é apenas isso: um objeto de prazer, ou melhor, do suspense em torno do prazer."
Eduardo Giffoni Flórido e Flávio Leandro de Souza. As Grandes Personagens da História do Cinema Brasileiro 1970-1979, 1999, pg. 70.
“Mulher, Mulher (1977), de Jean Garrett, é considerado o filme mais ousado da estrela, e talvez por isso, o de maior repercussão - ela interpreta uma mulher sexualmente insatisfeita que se excita com um cavalo. Cáspite! Na época, foi a cena mais falada do cinema brasileiro, e também uma das mais difíceis de filmar: o cavalo demorou a chegar perto do corpo besuntado de hortelã da atriz, reagindo, de forma violenta, às ordens do treinador. Ossos do ofício…”